O Derrame

Amor Escolhido – Cap 2

‒ Boa Noite. Onde posso encontrar Cassio Mouton?

‒ RG por favor. Qual seu parentesco com o paciente? – pergunta a recepcionista do hospital.

Não consegue conter as lágrimas. Já está num estado emocional deplorável para ter que cumprir burocracias. 

‒ Namorada. Sou sua namorada. Por favor, onde posso encontrá-lo.

‒ Ele não está no quarto, está no centro cirúrgico nesse momento.

A recepcionista deveria estar acostumada a cenas tristes e não moveu um músculo, quando Dominique irrompeu no choro descontrolado.

Sentada na sala de espera, perdida em seus pesadelos, não sabia se tinham se passado vinte minutos, uma hora ou toda uma madrugada, quando aquele médico apareceu chamando por um parente de Cassio Mouton.

Levantou-se meio assustada tomando consciência de que agora era ela a responsável por Cassio. 

Escutou o que o médico falava tentando se concentrar no todo, sem que sua mente divagasse na consequência de cada frase dita por aquele estranho.

  ‒ O paciente chegou consciente ao hospital. Percebeu que estava tendo um AVC e conseguiu ainda chamar um Táxi. Tudo foi muito rápido. Os exames de imagem mostraram a necessidade e urgência de se fazer um procedimento de desobstrução. A cirurgia correu bem, mas é impossível dizer o grau das sequelas. Ele passará 48 horas na UTI, depois 3 dias no quarto antes de ir para casa. A fisioterapia e fono devem começar imediatamente. Infelizmente não pode vê-lo agora. 

Agradeceu ao médico e voltou a sentar-se na mesma cadeira. Olhou o celular para ver a hora e lá estavam 20 chamadas não atendidas de Guilherme e 40 recados de Whatsapp. 

Ela não tinha o direito de fazer isso com aquele homem, companheiro de tantos anos. Imaginou a agonia do marido em casa sem saber o que estava acontecendo, apenas conjecturando. 

Mandou uma mensagem.

Guilherme, meu amor, eu estou bem. Impossível te explicar agora o que está acontecendo. Muito menos o faria por mensagem. Conversaremos assim que eu colocar minhas ideias no lugar. Por favor, tente não me odiar. Darei notícias em breve.

Ainda com o telefone na mão, procurava mentalmente alguém para quem pudesse ligar. Precisava ouvir que tudo ia ficar bem. Não ligou para ninguém, pois não tinha para quem ligar. Levantou-se pensando para onde ir. Não tinha para onde ir e não sabia o que fazer.

Saiu do hospital sentindo o ameno calor da madrugada daquela noite de março, em contraste com o gelo e a frieza do ambiente asséptico em que estava.

Entrou no carro sem destino, dando voltas por uma cidade árida e pouco hospitaleira, que é como sentia São Paulo naquele momento.

Quando percebeu, estava na frente do prédio de Cassio. Foi para lá que o carro a levou – o carro e seu inconsciente. 

Era um desses prédios modernos sem porteiros, tudo meio automático.  Sobe, procurando a chave da porta em sua bolsa. Sai do elevador e entra naquele apartamento que ela mesma decorou anos antes. 

Quando acende a luz, vê a xícara de café quebrada no chão, e o líquido esparramado. 

Chorou imaginando a cena. Antes mesmo de limpar aquilo tudo, correu para o quarto, pegou o travesseiro de Cassio e apertou-o contra o rosto. Precisava sentir seu cheiro, precisava sentir seu homem. 

Foi para sala, pois sabia que não conseguiria dormir. Restava-lhe esperar dar meio-dia para poder voltar ao hospital. Ligou a TV apenas para amenizar a solidão. Sorriu ao perceber que estava sintonizada no canal de notícias francês. Apesar de ter vindo morar no Brasil com 5 anos de idade, Cassio ainda tinha raízes importantes em sua terra natal.

A apresentadora do telejornal falava em tom de urgência sobre a quarentena recém decretada pelo Presidente Macron. 

Dominique tinha até se esquecido do coronavírus, assunto único das últimas semanas. Tentou prestar atenção. Eram quase 7.000 casos confirmados e 150 mortos na França, enquanto a vizinha, Itália, contabilizava assustadores 3.000 mortos naquela segunda-feira dia 16 de março.

Em São Paulo, que registrava 150 casos, pedia-se para que, quem pudesse, não saísse de casa, porém, não havia sido decretada qualquer quarentena.  Os contaminados eram devidamente rastreados, e isso dava à população uma certa sensação de controle, apesar dos alertas do então Ministro da Saúde.

A TVMonde entrevistava uma mulher chorosa, cujo marido estava isolado do outro lado do mundo, sabe-se lá por que, e agora se encontrava impedido de voltar para casa. Isso fez Dominique pensar em seu marido e em seus filhos. O que aconteceria dali para frente? Não conseguia nem pensar o quanto Guilherme estava sofrendo, e o tanto que ainda sofreria quando, finalmente, conseguissem conversar.

Levanta-se com um tranco como que para deixar seus pensamentos para trás e resolve ir para o hospital mesmo ainda sendo 8 horas da manhã.

Já na UTI, permitem que ela entre antes das 12h, pois Cassio já está acordado, ainda que sonolento e talvez um pouco confuso. 

Respirou fundo e entrou emocionada. Ia pedir a proteção dos santos, mas não se sentiu digna disso. Pensou que isso era algo que precisaria levar para terapia. 

Delicadamente, aproximou-se. Ele virou para olhá-la com uma tentativa de sorriso e ela então, dá-se conta de que o lado direito dele estava paralisado. Sorriu de volta, disfarçando o susto.

 ‒ Estou aqui Cassio. Vai ficar tudo bem.

Ele murmura sem deixar de fitá-la

  ‒ Inês…Inês…

Dominique assustou-se quando ele a chamou pelo nome da esposa. Sentiu vontade de sair correndo daquela situação bizarra, sumir, desaparecer. Não podia. Agora era hora de tentar ser fria e racional, entender que aquele homem na cama tinha sofrido um derrame há menos de 12 horas, e não foi por mal que a chamou pelo nome da esposa morta. 

Inês faleceu em 2016 vítima de câncer de mama. Lutou contra a doença por 2 anos, mas não resistiu. Dominique acompanhou tudo à distância, sofrendo com o sofrimento de seu amante. 

Não conhecia Inês, mas apesar do ciúme irracional que sentia, respeitava aquela mulher. Chegou a achar que seu affair que já durava 5 anos, não resistiria ao luto de Cassio. Ele sofreu. Sofreu muito, mas nunca por culpa de seu romance com Dominique. Sofreu pela perda da mulher que amava. Uma delas.

Após algum tempo, segurando sua mão, Cassio adormeceu.

Quando sai de perto da cama, percebe a presença do médico que observava a cena. Ela não sabia há quanto tempo ele ali estava e ficou envergonhada. Ainda se sentia a amante. Ainda era a amante. Claro que o médico não tinha como saber de nada daquilo. Enfim…

Ele a chamou para conversar.

‒ Como ele está doutor?

‒ Tudo correndo dentro do esperado, porém ainda é um pouco cedo para saber. O que acontece é que temos urgência em tirá-lo do hospital. A epidemia de COVID-19 chegou ao país, e já temos doentes infectados internados em outra ala da UTI. Ele está muito debilitado e não deve correr o menor risco de contaminação. Pode ser fatal nas condições em que se encontra.

 ‒ Certo doutor. Quais são as recomendações? 

 ‒ Ele vai para a semi intensiva amanhã, e depois vai para casa antes do previsto. Quanto tempo você precisa para organizar tudo para a chegada dele?

‒ Organizar? Como assim doutor?

‒ Cama hospitalar, adaptação de banheiro, contratação de HomeCare. Meu assistente conversará com a senhora e ajudará no que for necessário.

Dominique, nessa hora, sente as pernas fraquejarem. Fica olhando para o médico com cara de pânico. Entretanto, parece que ele estava ocupado demais para ampará-la e saiu rapidamente antes que precisasse consolar uma mulher chorosa. 

Despediu-se suavemente de Cassio e saiu para fazer o que tinha que ser feito. 

Não parou até que tudo, absolutamente tudo que era possível contratar, comprar, arrumar, alugar estivesse ticado de sua lista. Já eram quase 10h da noite. Não tinha voltado ao hospital e não tinha falado com Guilherme.

Foi tomar banho no banheiro de hóspedes, pois o do quarto principal já estava sem a porta do box e sendo adaptado com barras. A obrinha terminaria no dia seguinte. 

Já com a água a escorrer por seu corpo, começou a pensar nas consequências de tudo aquilo. 

Cassio não tinha filhos, era filho único e além de meia dúzia de amigos, só tinha a ela. Abdicou de muita coisa enquanto era casado e principalmente depois da viuvez, para manter Dominique em sua vida. 

Dominique e Cassio foram colegas de faculdade e perderam contato depois que se formaram. Mas quis o destino que se encontrassem em Paris, em 2010, num curso de atualização. 

Talvez o destino já não tenha tido muito a ver com o que aconteceu dali para frente. 

Alguns dirão que foi por livre arbítrio que Cassio convidou Dominique para jantar naquele bistrô super romântico. Dominique não pode culpar o vinho por tê-lo feito experimentar seu mil folhas com framboesas, fazendo às vezes dos talheres com seus delicados dedos.

Paixão avassaladora e duradoura. Quem falou que a paixão dura 2 anos? Dominique e Cassio atestam que isso é dito por aqueles que ficaram apaixonados somente por 2 anos. 

Apesar daquele sentimento enlouquecedor, ambos nutriam um sentimento de respeito, amor, carinho pelos parceiros de vida com quem tinham se casado.

Chegaram muito perto de se separar de seus respectivos cônjuges, mas em momentos diferentes. Tivesse coincidido qualquer período de grande dúvida ou angústia a história teria sido outra.  

Assim foram levando aqueles 3 primeiros anos, equilibrando família, culpa, trabalho, paixão… até o diagnóstico de Inês. 

Cassio fez o possível e o impossível. Não se conformava que estavam perdendo a batalha. Foi de uma devoção comovente, e Dominique o amou ainda mais por isso. Era com ela que ele chorava depois de cada resultado de exame de Inês. 

Depois da morte da esposa, saiu da casa em que moravam e se mudou para o apartamento atual. Foi natural Dominique ajudá-lo a escolher o imóvel e decorá-lo como se fosse aquela, a casa do casal. 

Mas não era. Eles não eram um casal, eram amantes. Ela estava no chuveiro da casa do amante, e seu marido estava em casa perdido, esperando por uma explicação. Imaginando um milhão de coisas, fazendo ligações com suas desculpas do passado, chegando a conclusões sem que ela estivesse lá. 

Não consegue imaginar o sofrimento que impingiu a seu companheiro. O que fará? Qual a reação de Guilherme quando conversarem? O que vai falar para as crianças? Não podia dar vazão a esses pensamentos agora. 

Cassio precisará de muitos cuidados e por bastante tempo, e é ela quem se dedicará a isso. Por amor, respeito, compaixão e responsabilidade.

Saiu do banho sentindo o cansaço daqueles dois dias. Estava exausta física e emocionalmente. Abriu a parte do armário onde mantinha suas coisas procurando algo confortável para dormir, mas antes de se deitar resolveu dar uma olhada no celular. 

Mensagem de sua filha perguntando se poderia usar a casa da praia no final de semana, ou seja, Guilherme não tinha falado com os filhos ainda. Aliás, ele estava em silêncio desde a última mensagem que enviou.

Eliane Cury Nahas

Economista, trabalha com tecnologia digital desde 2001. Descobriu o gosto pela escrita quando se viu Dominique. Na verdade Dominique obrigou Eliane a escrever. Hoje ela não sabe se a economista conseguirá ter minutos de sossego sem a contadora de histórias a atormentá-la.

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