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A casinha do armário e os segredos de uma lembrança

Dominique - Armário
Lembranças de um armário? Sério?

Meu pai, como já contei, era engenheiro inglês e veio para o Brasil a serviço de uma empreiteira locado na construção de Brasília e outras grandes obras.

Naquela época, não havia muito essas grandes especializações de hoje. Engenheiro era engenheiro. Estrada, pontes, cidades, tanto fazia. Era a pessoa que sabia construir.

Isto posto, lembro que meu pai era o consultor de todos os amigos na hora de comprar o primeiro imóvel.

Num sábado ensolarado, lá longe, acho que em 76 ou algo assim, papai me convocou para acompanhá-lo a uma destas visitas técnicas.

Era uma casa. Aos olhos de uma menina, uma casa velha. Apesar de vazia, vi os sinais dos antigos moradores em todos os cantos. Nenhum móvel. Mas pinturas riscadas, pisos andados, armários empenados.

Meu pai técnico que era, analisava cada milímetro para elaborar um relatório preciso e perfeito que fizesse jus a responsabilidade a ele conferida. Avaliar a compra da morada de toda uma família era coisa muito séria, ainda mais em tempos de “pra toda vida”.

Você consegue imaginar o tempo que ficamos por lá?

Bem. Passada a primeira hora, já sem nada para fazer e sabendo que ficaria lá por muito tempo, comecei uma exploração investigativa da casa.

Em cada cômodo analisava os sinais do tempo e imaginava como estes interagiram com as vidas lá vividas.

Cozinha com uma copinha.

Vi ali, com os olhos imaginativos de uma criança, a avó, mãe da dona da casa, separando o feijão que ficaria de molho para o almoço de domingo.

A mãe, dona da casa, ouvia o radinho de pilha enquanto lavava a louça do café e começava a pensar no almoço do sábado.

Na sala, na poltrona, o pai de chinelos, lia o jornal e se preparava para quem sabe lavar o carro.

Sai para o jardim.

Quantos filhos seriam?

Hummm…

Acho que naquele cantinho ficava uma bicicleta. Olha as marcas do guidão no muro. Ahhh… Isso é com certeza coisa de menino.

O quintal tinha um pequeno jardim. Este jardim deve ter sido o orgulho de alguém quando era bem cuidado.

Hoje com sua grama alta escondia o caminho de pedras que levava ao portão. Portão baixo que obviamente não tinha a intenção de proteger.

Naquela época, imagino que sua função era apenas de delimitar território ou prover privacidade.

Na grama alta, vi o que identifiquei como sendo marcas de um Velotrol. Provavelmente não era nada disso.

Subi uma escada de madeira estreita que rangia a cada passo. Um corredor pequeno dava acesso aos quartos.

No primeiro à direita, uma marca na parede junto a um prego me pareceu ter a forma de um pequeno oratório. Pronto. Este era o quarto da avó.

Em frente, o quarto com janela para rua. Um pouco mais de espaço. Com certeza, o quarto dos pais.

Ahhh… Um banheiro para todos. (Vocês hão de acreditar, mas naquela época, era comum. E conseguíamos nos virar uma família inteira em um único banheiro).

Aí entrei no quarto que deveria ser dos filhos. Marcas nas paredes mostraram que muitas coisas foram pregadas e arrancadas. Outras tiradas e levadas embora.

Queria saber mais daquelas crianças.

Marcas de bola no teto. Vishhh. A mãe deve ter ficado muito brava. Piso de taco, bem desbotado perto da janela. E menos nos espaços onde as camas devem ter ficado.

Do outro lado de onde deveriam ter sido as camas, vi um armário embutido. Fui até ele, esperançosa.

Quem sabe ao abrir aquelas portas, encontraria objetos esquecidos ou deixados pela família que me presenteassem com detalhes ou pistas para melhor montar minhas histórias.

Abri a primeira porta, confesso que ansiosa. De lá só saiu um cheiro estranho. Cheiro que nunca esqueci. Cheiro de abandono. Prateleiras vazias e empoeiradas.

Abri a segunda e da mesma maneira nada existia além do tal cheiro.

Abri a terceira e última porta, já sem esperança, mas por insistência.

Ao abrir, parei. Fiquei olhando meio que em transe. Um estado nunca sentido antes. O que vi me despertou de um sono. Mas meus olhos estavam hipnotizados. Fixos naquele pôster pregado na porta do armário, estava lá David Cassidy.

Lembra dele? O filho mais velho daquela série Do Re Mi. Não ria. É serio. Pôster do David Cassidy.

Senti umas coisas estranhas acontecendo comigo. Algo como um certo frio na espinha.
Um vazio na barriga que não era fome. Um comichão. Acho que foram meus hormônios se manifestando pela primeira vez na vida, me avisando que eu era mulher. Não sei.

Mas dai pra frente minha vida nunca mais seria a mesma. Nunca mais conseguiria viver sem aquele frio na espinha. Até hoje preciso dele como preciso do ar que respiro.

Ahhh… Tio Miguel não comprou aquela casa. E ainda tenho muito carinho por David Cassidy.

Afinal, o primeiro tesão a gente nunca esquece.

E eu jamais esquecerei daquele armário…
Eliane Cury Nahas

Economista, trabalha com tecnologia digital desde 2001. Descobriu o gosto pela escrita quando se viu Dominique. Na verdade Dominique obrigou Eliane a escrever. Hoje ela não sabe se a economista conseguirá ter minutos de sossego sem a contadora de histórias a atormentá-la.

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