Uma Dominique Pulando a Cerca

Foi uma separação difícil. Depois de quase 3 décadas juntos, 5 anos namorando e 22 casados, chegava ao fim aquela união que um dia achei que seria definitiva.

“Recomeço” portanto tornou-se meu nome do meio.

Já que era para recomeçar era para ser em grande estilo. Por uma série de motivos, resolvi que mudaria o estado civil, a cor do cabelo e o país em que morava. Pronto.

Foi dessa forma que “confusão” passou a ser meu sobrenome.

Fazer o quê?

Seja lá por inexperiência, por orgulho em não pedir ajuda, por ansiedade em sair fazendo, ou porque sou assim mesmo, tenho causado uma certa bagunça pelo caminho ultimamente.

Era um agradável anoitecer de fevereiro, em mais um domingo sem filhos. Almocei com uma amiga, e cheguei em casa relativamente cedo. Assisti 2 episódios de minha série do momento e comecei a ficar entediada, melancólica… sei lá.

Aí pensei: Mente vazia oficina do diabo ou do carboidrato.

Se ficar aqui à toa ou vou me entupir de chocolate ou vou pensar mais do que permitem minhas dopaminas e oxitocinas num modorrento final de domingo.

Então pelo bem geral de Portugal e do Brasil resolvi fazer algo. Mas o quê? Com o olhar perdido na direção do horizonte… Péra. Que horizonte? A porta de vidro que separa a sala do terraço estava imunda!!

Genial! Limpar vidro é um ótimo exercício.

Armei-me com todo instrumental disponível no mercado e fora dele (jornal, quem não conhece o truque de limpar vidros com jornal?) e marchei rumo ao inimigo. Vestida com minhas roupas de guerra, aquela legging manchada de cândida, a camiseta do camarote daquele carnaval que passou e o agasalho de moleton que já viveu dias mais agitados. Meus cabelos estavam apanhados com uma piranha num coque mal-ajambrado.

Tudo minuciosamente pensado para assustar o inimigo de cara.

Esfregão e balde em punho, lá fui eu. Abri a porta de minha sala que dá para o terraço, saí para fora e no instante que pisei na varanda daquele aprazível apartamento lisboeta, escuto o delicado som daquela imunda porta de vidro se fechando em minhas costas. Parecia que ela estava zombando de mim. Sério. Esperou eu sair imponentemente com meu arsenal, para aí, devagarinho, traiçoeiramente se fechar.Click.

Ai, my God! E agora? Pânico! Pânico!

Já estava escurecendo e esfriando muiito. Não passava vivalma naquela rua esquecida por Zeus e por Cristiano Ronaldo.

Não!! Claro que a porta não abre pelo lado de fora! Senão nem estaria aqui escrevendo esse textão né?

Comecei a gritar mas gritei para ninguém por que quem em sã consciência sairia numa noite de fevereiro com temperaturas próximas a 6 graus quando longe do sol?

Estratégica que sou pensei nas opções possíveis.

  1. Passar a noite ali, esperar amanhecer. Alguém apareceria pela manhã na rua e eu pediria para chamar o bombeiro. Se tivesse sobrado voz ou se eu não tivesse morrido de hipotermia. E de fome. Sim, sou muito exagerada.
  2. Tirar minhas roupas e fazer uma “Teresa”. Ahhh, você não sabe o que é uma “Teresa”? Não me diga que nunca esteve presa? Ahh..Fala verdade!! Tô brincando. Teresa é uma corda feita de lençóis ou de roupas para que princesas fujam das torres onde se encontram aprisionadas. Por mais romântico que te pareça essa ideia, não é a solução uma vez que meu ap é no 3º andar. Tá louca? E já pensou? Mesmo que desse certo. Imagina eu chegando ao rés do chão em pelo, agarrada a uma Teresa? Não. definitivamente não rolaria!
  3. Ligar para minha mãe. kkkkkk Você acha que se eu tivesse levado o celular eu ainda estria naquele terraço?
  4. Existia uma possibilidade factível, de difícil execução, entretanto com chances de sucesso. Eu teria que pular a cerca para o apartamento de um de meus vizinhos de andar.

Vamos ao plano.

Primeiro as boas notícias : Eu não tinha apenas um vizinho, tinha dois, um de cada lado sendo que um deles estava totalmente escuro, entretanto o outro brilhava resplandecente luzes indicativas do destino. Que felicidade achar um caminho.

Agora as notícias nem tão boas assim: Não seria tão fácil pular para o vizinho porque na verdade não era um cerca a ser transposta, e sim uma parede, portanto o único jeito possível seria passar de um ap para o outro pelo lado de fora.

Desafiando todas as leis da gravidade e minha vertigem lá fui eu.

Vou te poupar dos detalhes e malabarismos que fiz, apenas acredite que foi patético, desajeitado e indigno. A aterrisagem beirou o desastre, mas entre mortos e feridos salvaram-se todos.

Aprumei-me e comecei o reconhecimento. Já acostumada com a escuridão facilmente identifiquei os móveis naquele terraço. Olhei pelo vidro pala sala iluminada e vi uma senhora beeem senhora mesmo com seus cabelos brancos combinando com sua camisola de flanela rosa e a manta xadrez que a aquecia enquanto assistia TV.

E agora? Como abordá-la sem matá-la de susto? Imagine uma pessoa surgir da escuridão, no seu terraço sem mais nem menos. Acho que nem Freddy Krueger passaria incólume por isso.

Pensei, pensei, pensei por quase 3 minutos (tava frio, gente, poxa vida!) e resolvi que não tinha jeito a não ser bater no vidro.

E de mansinho, com muita delicadeza, aproximei-me da porta de vidro e dei três batidinhas de leve: toc,toc,toc. Foi tão de leve que Dona Senhora nem se mexeu. Claro que ela já não deveria estar escutando lá grandes coisas, pois também não escutou minha gritaria pedindo por socorro nem tampouco minha estabanada chegada em sua morada.

Percebi que precisaria me fazer notar.

TOCTOCTOCTOC…

Dona Senhora já com uma carinha de pânico olhou para a janela e ao me ver grudada ao vidro, encolheu-se colocou os braços em frente do rosto como quem não quisesse ver mais nada. E assim ficou. Comecei a falar mas acho que por conta de toda a situação as palavras saiam de forma descontrolada num tom indesejado.

— Não se assuste. Abra a porta, me deixe entrar por favor. Eu explico. Mas abra a porta.

Imagine isso dito com uma voz meiguinha. Agora imagine isso dito aos berros. Pois é. Eu não estava melhorando a situação.

Depois de algum tempo, tendo eu me acalmado, consegui balbuciar pedidos de desculpas quase congelando, apresentei-me e justifiquei-me. Ela compreendeu. Gentilmente abriu a porta da varanda, deixou que eu entrasse em sua casa, e imediatamente, sem cerimônia, abriu a porta de sua casa e deixou que eu saísse.

Não posso reclamar de Dona Senhora, vai. Quem é que abriria a porta pruma louca no meio da noite? Acho que nem o Freddy Krueger. Querer que ela me convidasse prum chazinho já seria demais, né?

Bem, cá estava eu, do lado de fora de meu apartamento sem poder entrar porque obviamente não estava com as chaves.

Eu cheguei a te falar que estava de meias? Sim, só de meias, sem sapatos. Ué, por que haveria eu de ir a meu terraço lavar janela de sapato?

Pois é. Agora é tarde.

Sem chave, sem sapato, sem celular, sem dinheiro, sem amigos ou conhecidos naquele prédio sem porteiro. Não ousaria acordar algum outro morador e ficar mais conhecida ainda em Portugal. Não com essa fama.

Saí do prédio de meias pois lembrei da pequena loja de conveniência que tinha na esquina. Se não me enganava era uma loja 24 horas.

Claro que me enganei e ela estava fechada.

Sentei no meio fio já sem forças e sem ideias. Comecei a pensar se tudo aquilo estava valendo a pena.

Não!! Eu não choraria!!

E quem disse que eu consigo controlar? A água brota de meus olhos sem que eu tenha a menor ingerência sobre ela, e em qualquer situação. Por que haveria ela de se intimidar naquela fria e deserta noite lusitana? Quando senti as primeiras lágrimas em minhas faces, mas antes mesmo de sentir o gosto delas, uma mão delicadamente pousou em meu ombro.

Tamanha foi a delicadeza do toque que não me assustei, apenas virei o rosto para encontrar Dona Senhora parada atrás de mim enrolada em seu xale. Com aquele delicioso português, disse.

-Ó menina, trate de levantar e vir para dentro. Vou fazer-lhe um chávena de chá bem quente enquanto liga para um chaveiro que há de demorar a chegar uma vez que é domingo.

Dona Senhora na verdade chama-se Dona Benvinda.

História baseada em fatos reais.

Leia Também :

Quando eu crescer e envelhecer pra valer quero ir para um asilo

Eliane Cury Nahas

Economista, trabalha com tecnologia digital desde 2001. Descobriu o gosto pela escrita quando se viu Dominique. Na verdade Dominique obrigou Eliane a escrever. Hoje ela não sabe se a economista conseguirá ter minutos de sossego sem a contadora de histórias a atormentá-la.

24 Comentários
  1. Adorável seu estilo, sua historia.
    Passei por uma situação semelhante. Eram onze horas da manhã e meu bebê estava dormindo no berço. Fiquei presa no corredor, diante da minha porta. Minha vizinha do lado abriu-me a sua casa, e pulei do terraço dela para o meu, Igualzinho você!

    1. Amei! Na verdade conheço essas portas portuguesas. Morei 9 meses em um apartamento desses e tinha o maior cuidado para não ficar presa na varanda, kkkkkk. Basta um descuido e pronto. Vc não entra.

  2. Senti em mim, o pavor dela por ter ficado trancada ao lado de fora, totalmente despreparada para enfrentar uma situação tão repentina e sem possibilidades de ser ajudada por ninguém. tomando de coragem foi até a vizinha e quase sem poder falar, devido muito frio, mas aos poucos foi conseguindo reanimar suas energias e assim a história segue, vou aguardar a publicação do seu final, por que achei muito,legal e espero Qye terá um fim delicioso e bem positivo. Obrigada.

  3. Ótimo texto para um sábado fedorento, numa quarentena.
    Obrigada por compartilhar sua história.

  4. Ótimo texto para um sábado fedorento, numa quarentena.
    Obrigada por compartilhar sua história.
    Espero receber novos textos.

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