A mitologia e o envelhecer…

Por: Luciene Felix Lamy

A minha área atuação é a Filosofia que, em seus primórdios, entrelaça-se com a mitologia grega. Por isso, quero começar o meu texto contando a história do início da Guerra de Tróia. 

Tudo começou no casamento de Peleu e Tétis. A deusa da discórdia, Éris, não havia sido convidada e, para causar confusão, jogou uma maçã de ouro no meio do salão onde estava escrito: para a mais bela. 

Rapidamente as três deusas mais poderosas, Hera, Atena e Afrodite candidataram-se para receber a honraria. Zeus, o deus supremo do Olimpo, não quis tomar a decisão sozinho. Por isso, ele delegou a tarefa ao jovem Paris, filho do rei Príamo, um moço jovem  e inexperiente. 

Cada uma das deusas tentou persuadi-lo para ganhar a maçã de ouro. Hera, a esposa de Zeus, ofereceu a Paris a glória de ser o rei de toda a região. Hera ofereceu sabedoria, um dos seus principais poderes. Mas foi Afrodite, a deusa da beleza, quem ofereceu a ele o amor da mulher mais bonita do mundo. 

Paris ficou confuso, porém escolheu Afrodite e o amor. Afrodite sabia que na terra a mulher mais bela era Helena, mulher de Menelau, o rei de Esparta. Paris e Helena fugiram juntos para Tróia e a guerra começou. 

Afrodite não é só uma!

Estudando o tema com mais profundidade, descobri que a deusa Afrodite é mais de uma. A mais velha é Urânia (associada ao eterno e imortal) e a mais nova Pandêmia (ligada ao transitório e mortal). É por esta última que os homens amam mais o corpo que a alma.

Mas Afrodite Pandêmia – que se considerava uma poderosa divindade – um dia é vencida pelo tempo ou o deus Chronos. Ela perde o seu poder para o seu fiel, temido e invencível inimigo. 

O filósofo Platão, no livro O Banquete, escreveu que “e é mau aquele amante popular, que ama o corpo mais que a alma; pois não é ele constante, por amar um objeto que também não é constante. Com efeito, ao mesmo tempo que cessa o viço do corpo, que era o que ele amava, “alça ele o seu vôo”, sem respeito a muitas palavras e promessas feitas. Ao contrário, o amante do caráter, que é bom, é constante por toda a vida, porque se fundiu com o que é constante”.

Afrodites Dominiques… 

Postulando sobre a questão da velhice, especificamente no que tange às Afrodites na faixa dos 50+ (outrora Pandêmias, hoje, infelizmente, nem sempre Urânias), a abrangência que essa questão suscita é vasta. Há o viés filosófico, mitológico, biológico, psíquico (psicanalítico), econômico, cultural, estético, literário, antropológico, midiático, etc. Eis aqui, nosso breve recorte.

Mas, antes, uma piada: 

Como não envelhecer? Esquece, pede outra coisa. Aceita que dói menos. Bem, na verdade, vai doer de qualquer forma.

Envelhecer é vislumbrar o crepúsculo, é ir despedindo-se da vida. Daí o medo, a paúra em testemunhar a decrepitude do corpo. Mas o nosso canto do cisne – único, pessoal, intransferível – pode ser belíssimo!

Estamos todas sujeitas à alteração de Chronos (o deus do Tempo), ou seja, todas nós, mortais, vamos perder nosso poder. Isso é a causa das nossas maiores angústias. Estarmos atentas a esse mecanismo nos liberta de nos sentirmos reféns e nos eleva a outro patamar, ao não menos poderoso terreno da serenidade e da suprema sabedoria: ao de Afrodite Urânia.

Inegavelmente, nós somos todos escravos da beleza. Tanto que, a nossa revelia, o belo atrai, catalisa, é magnético e é quem manda em nosso olhar. O belo, sobretudo a beleza da juventude, traz a promessa de felicidade” proustiana e o claro indício da capacidade natural (e sobrenatural!) de criar novas vidas. Portanto, é notório o poder oriundo da potencial fertilidade feminina.

Enquanto viventes, estamos atreladas ao nosso corpo, mortal, sujeito à corrupção de Chronos. E ele, o corpo, é também condição “sine qua non” para que nos manifestemos. Também é um dos argumentos a favor da aceitação (que pode ou não ser precedida por negação, raiva e barganha) dos efeitos da decrepitude neste corpo que ponderamos.

Pois bem! Considerando que este corpo é um veículo perecível – e que após meio século de vida os sinais da velhice vão se intensificando e se impondo – cabe a nós fazer o uso da razão e ponderar sobra a ressignificação que a manifestação deste corpo – no tempo, no espaço – requer, que pode vir a ter.

Sim, analógicas e digitais, além de vivenciarmos o que foi “cair a ficha nos orelhões das esquinas da vida”, temos Instagram, um armário abarrotado e algumas décadas extra!

Talvez ainda não estejamos sabendo lidar muito bem com isso. É mais comum uma jovem de 30 anos achar-se velha (coisas do 1º regresso de saturno) do que uma mulher de 50+ aceitar interditos à sua faixa etária.

Ageless é uma nova onda que, se não estiver sob o escrutínio do bom senso, revelará algo de forçosamente hipócrita ou fake.

Eu acredito que convém discernimento para separar o joio do trigo: ageless é a grande conquista para o emprego de todo esse gás que ainda dispomos e nos reinventar, desbravando novos mundos, na medida do possível. Mas é um bom paliativo!

Sim, já vivenciamos o ápice do vigor de nossa juventude, de nossos 20 ou 30 anos!Corremos, focamos, nos dedicamos e cumprimos inúmeras tarefas. Trabalhamos muito. Vivenciamos anseios, dúvidas, angústias, enfrentamos desafios e superamos provações.

Carregamos a árdua e imperativa tarefa de escolher – com mais ou menos liberdade – nosso destino em várias esferas da vida: do ponto de vista profissional ou afetivo. Provavelmente até mais de uma vez. Optamos por gerar ou não nossos filhos. Por cultivar ou não afetos, por priorizar ou não galgar elevadas posições.

Para nós, na faixa dos 50+, as duas últimas décadas talvez tenham sido as de maior empenho de nossa parte pelo Outro. Foi quando estivemos absortas, fazendo o que podíamos por nossa carreira e pela família, tanto a que originamos quanto àquela que nos originou.

Foram muitos os encontros e desencontros, mas todos edificando nosso caráter. Ah, os afetos alinhavados enquanto estávamos entretidas na criação de nossa prole. “Velhos tempos; belos dias! ”.

E fizemos! Meu Deus, como fizemos!

Mas eis que chega esse momento de reavaliação das principais ações, que nos ocupou e preocupou por décadas. Essa faixa – a dos 50+  – na qual nos flagramos prostradas diante de nós mesmas, inquirindo perplexas:

“Então, fiz ou agi conforme meu meio social, a época, a cultura e os valores vigentes pautavam. Mas…. É só isso? Agora é afogar no mar do vazio, da opacidade, da ausência de desejos e, pior, coroando todas essas angustiantes indagações, velar a decrepitude do corpo, resignar-me?”

Toda essa avalanche de questionamentos (elenquei acima alguns exemplos), acompanhados da sensação de inutilidade, é fruto do que realmente?

De não determos mais o poder de gerar? Mas já geramos. Ou optamos por não gerar, antes mesmo que o aplicativo do interdito biológico (menopausa) se instalasse.

Da expectativa de levarmos a cabo (e bem) a tarefa de educar, preparando a prole para a vida? Mas já os encaminhamos!

De não saber o que mais fazer? Ah, desejante homo-faber!

Bem, de praxe, equiparamos o Ser ao Fazer. “O que você faz?” Culturalmente, é com a resposta a esta pergunta que definimos a nós mesmas e aos demais.

E sequer havia necessidade de algo reconhecidamente brilhante ou extraordinário para uma resposta legitimamente satisfatória, que nos definisse. Bastava um simples “cuido da casa ou zelo pela família.” Há algo mais distinto e moralmente positivo do que responder assim, com toda honra e toda glória?

Eis que a guardiã do fogo dos antepassados, do lar, a deusa Héstia nos empodera, meninas!

Claro, muitas de nós conquistaram um papel de inegável destaque no seio social: Mãe de Família! Há título mais respeitoso?

Tão virtuoso que eclipsa até o de uma cientista que se dedique à cura do câncer, por exemplo. Para cada dez mães de família, uma cientista bastaria. O contrário, talvez não.

Porque, vamos combinar de falar a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade? Por conta do que o pai da Psicanálise, Sigmund Freud, denominou “desamparo estrutural”, a maternidade reivindica para si a maior glória do mundo. Sem [boas] mães não há sequer seres humanos. Ponto.

No entanto, contudo, todavia, à medida em que o Tempo passa (Oh, Chronos impiedoso!), a capacidade de gerar se extingue. Os filhos gerados crescem, saem de casa e vem a angústia da síndrome do “ninho vazio”.

Também pode haver a cama vazia, o bolso vazio e, talvez, ainda mais danoso: a cabeça vazia.

Amor. Desejo. Voltemos ao início, à deusa da beleza e do amor, Afrodite, a potestade com a qual iniciamos essa prosa.

Amar/desejar SEMPRE dá um sentido para a vida, um propósito para o viver.

Amar a si mesma. Amar aos filhos. Amar o que se faz. Quanto aos demais, compreender talvez já seja o suficiente.

Pois bem, compreender aos pais, aos irmãos, aos amigos, àqueles que – à revelia ou não – o acaso colocou em nosso caminho.

O filósofo grego pré-socrático Heráclito de Éfesos dizia: “O tempo é criança brincando, de criança o reinado.”. Entreter! Entretemo-nos e enriqueçamo-nos com as mundanidades que agradam aos nossos olhos, que edificam e enobrecem a nossa alma!

Temos Dante, Victor Hugo, Dostoievski, Shakespeare, Guimarães Rosa e Machado de Assis (temos as séries da Netflix!). Temos a beleza das flores e da decoração dos ambientes, os bons odores, as artes, as viagens, as amizades, a solidariedade, o curso de idioma, a dança de salão. Todas atividades tão prosaicas, cotidianas e, por isso mesmo, tão salutares.

Temos toda uma desfavorecida e, portanto, necessitada humanidade à nossa volta para olhar e fazer, homo faber!

Mas tal qual a birrenta imatura que se recusa a passar o bastão, ansiando por uma irrealizável imortalidade, não nos enxergamos em todas as dimensões. Colocamos em relevo as rugas, a flacidez e o prateado dos cabelos. Nós mesmas nos limitamos a isso, míopes à grandiosidade do Cosmos, à Afrodite Urânia em nós.

É tão feio assim, envelhecer? Contemple a enfermeira polonesa Irena Sendler (imagem acima) e veja o quão bela – no corpo e na alma! – uma mulher bondosa e sábia pode ser.

Como boa e prática chronida que sou (Capricórnio), francamente, rebelar-se contra o invencível Chronos é pura perda de (e para o) tempo. Mire lá em cima, no alto, a plateia agora é outra, capisce?

Desfrutar profunda e serenamente o crepúsculo que já se avizinha, usufruir destas preciosas últimas décadas de vida (Oh, dádiva!) com lucidez, gratidão e sobretudo com ALTIVEZ é, sim, uma belíssima saída possível.

Saída. Foi o que escrevi, pois sairemos. Que seja de forma digna e honrada, como convém aos sábios. 

Luciene Felix Lamy é formada em Filosofia (PUC-SP) e leciona mitologia greco-romana na Galleria Borghese, em Roma.

Outros posts sobre o Envelhecer:

Quando morrer quero ir para um asilo top

Amiga para valer é tão gostoso quanto café com leite

4 Comentários
  1. Muito bonito o texto, limpo, engraçado, irônico, e claro, verdadeiro! Tenho 60, fui comemorar numa aventura de 30 dias pelas areias do Egito! Sonho antigo, por anos adiado por tudo: família, trabalho, falta de oportunidade, de companhia! Por fim, me imbuí de um pouco de cada parágrafo do seu texto, e lá fui eu realizar meus 60 bem vividos! Gostei muito, vou guardar, vou reler! Merci!

  2. Excelente texto! A Filosofia sempre esteve nos meus caminhos e fez toda diferença na minha formação e profissão. Dominiques qualificam-se sempre!

  3. Sendo Urânia ou Pandêmia, você é uma “Dominique” das mais preciosas. Bom te ler aqui. Você e o site estão de PARABÉNS!

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