Amiga pra valer é tão gostoso quanto café com leite

Dominique - Café
Nasci virada para lua. Faço parte de uma família com F maiúsculo, formada por pessoas muito queridas que são pau pra toda obra, faça chuva ou faça sol.

Minha sorte não acaba por aí. Tenho uma irmã que não é de sangue. Que grande asneira este lance de sangue. Tipo A, O, B, AB tanto faz. Tem gente que eu tenho certeza que nem sangue tem.

Aos 6 anos, a senhora que trabalhava na minha casa precisou sair. Mandou a filha dela em seu lugar. A garota tinha apenas 12 anos. Minha mãe matriculou-a na escola e crescemos juntas. Nunca mais nos separamos, nem com os caminhos tortuosos que a vida nos surpreendeu.

Minha infância foi divertidíssima com esta criatura. Aprontávamos todas e mais algumas. Confiava a ela os meus mais picantes segredos, se é que aos 10 anos temos segredos tão picantes assim.

Ela esteve presente em todas as fases da minha vida. Absolutamente todas.

Quando engravidei, solteira, aos 17 anos, ela soube em primeiro lugar.

No dia em que os amigos da minha irmã chegaram para dar a notícia que ela havia morrido, foi para ela que olhei aterrorizada primeiro. Dormiu comigo naquela noite e não desgrudou um só segundo.

Soube de todos meus namorados e paixões não correspondidas, das correspondidas também. Cedeu seu colo e ombro tantas e tantas vezes que é impossível enumerar. Perdi a conta faz tempo.

A morte bateu mais uma vez à minha porta. Em plena festa de 60 anos do meu tio, minha mãe morreu dançando, do jeitinho que merecia, se divertindo à beça. Quem chegou algumas horas depois mesmo não tendo carro na época? Ela. Novamente dormiu comigo, se é que conseguimos pegar no sono. Não arredou o pé até o final. Sempre ao meu lado.

Minha filha nasceu. Ela curtiu cada segundo. O amor que nutre por meus filhos é incondicional, é madrinha, tia, mãe também. O que o sangue tem a ver com isso? Eu afirmo, nada.

De novo, a morte chega perto. Desta vez leva meu pai. Ele ficou doente por alguns meses. Além de outros entes queridíssimos que me ajudaram muito, quem revezava comigo no hospital e depois em casa? Ela. Meu pai se foi. Antes de partir pediu para ser enterrado junto da minha mãe em Piracicaba. Quem estava comigo o tempo todo, a noite inteira e foi comigo para o interior? Ela.

Figurinha carimbada esta doce criatura. Não pode ver um enterro que já fica saltitante. Papa defunto!

Muitos devem pensar que esta mulher tem tempo livre e vida fácil para estar à minha disposição sempre. Exatamente o oposto. Mora onde Judas perdeu os ossos. As botas, as meias, as unhas e a pele ele perdeu quilômetros antes. Leva duas horas e meia para chegar à minha casa. Acorda todos os dias às 4h30 para chegar antes das 8h no trabalho. Na volta é a mesma via crucis.

Descanso no final de semana? Nem por sonho. Há anos adotou uma senhora, ex-moradora de rua, que não tem ninguém, absolutamente sem eira nem beira. É difícil definir a idade da velhinha, um bom chute é por volta de 95 a 100 anos. O amor entre as duas é uma lição de vida como nunca vi na minha longa existência. Não dá para explicar, só para sentir.

Passamos por um estresse uma única vez nestes 46 anos. Minha cachorra, Lollypop Tereza, vinha enlouquecendo meu ex-marido. Como homem decente estava pela hora da morte, era a cachorra ou ele. Quem se ofereceu para ficar com a maluca? Ela.

A cachorra também causou na sua casa. Trucidou a porta do carro, comeu o pneu e as correias da moto do filho, não uma vez, mas duas. Roeu o cimento da parede do quintal. Completamente insana.

Uma bela tarde, ela chega em casa com a alucinada de 4 patas a tiracolo e diz – Toma que o filho é teu. Quem pariu Mateus que crie! Brigamos, mas foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Meu anjo canino voltou para o lar de onde nunca deveria ter saído e hoje vive pacificamente no seio da família. Tudo bem rouba um franguinho ali, outro aqui, mas vamos levando.

Dominique - Café

Já rodei a baiana profissionalmente algumas vezes por causa dela. Esta minha irmã é uma negra linda. Eu morava num prédio metido à besta. Um dia ela chegou para me visitar, o porteiro avisou pelo interfone e de repente a campainha da porta de serviço tocou. Abri e me deparei com ela. Achei estranho e perguntei – O elevador social quebrou? Ela disse – Não. O porteiro me mandou subir por aqui. Surtei. Surtei de verdade. Desci numa velocidade tal que em apenas 30 segundos estava na frente do infeliz. Eu que sempre fui tão gentil e educada com todos no edifício, falei tanto na orelha daquele ser inescrupuloso e finalizei deixando claro que isso dá cadeia, é preconceito. Na minha casa ninguém decide por onde as pessoas entram.

No bota fora do meu filho, ela estava presente, claro. Uma das pessoas convidadas cumprimentou todo mundo e pulou a vez dela. Não era a primeira vez que fazia isso. Ignorei, cheguei à conclusão que a melhor tática para lidar com gente assim é abstrair e fingir demência. Apesar de não ser rancorosa, nunca perdoei. Ela magoou a minha irmã.

A única pessoa com quem posso conversar sobre as minhas lembranças de infância, das rotinas da minha casa, do dia a dia com meus pais, é com a minha irmã de não sangue.

Temos um combinado. Vamos envelhecer juntas. Uma vai cuidar da outra. Este acordo que não será quebrado sob nenhuma hipótese me faz encarar o futuro com alegria. Temos planos e vamos nos divertir uma barbaridade na terceira, quarta, quinta idade.

Quando eu crescer quero ser igualzinha a ela. Levando em consideração que já estou com mais de meio século, pelo andar da carruagem, terei que deixar este desafio para a próxima vida.

Se isso não é amor, então o que é? O que o sangue tem a ver com este relacionamento? Que diferença faz se eu sou branca e ela é negra? Quer mistura melhor do que um delicioso e quentinho café com leite?

É isso. Somos café com leite. Leite integral tipo A e café torrado e moído na hora. Servido nas melhores cafeterias da cidade. Você tem alguma amizade assim?

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Marot Gandolfi

JORNALISTA, EMPRESÁRIA, AMANTE DE GENTE DIVERTIDA E DE CACHORROS COM LEVE QUEDA PARA OS VIRALATAS.

3 Comentários
  1. Que linda amizade! Irmãs de verdade seguram a onda, riem,choram e estão sempre prontas para batalhas de lágrimas e risos!!!

  2. Meu Deus que texto maravilhoso, que história linda!
    Olha me senti parte da família, vocês têm espaço para adotar mais um?
    Parabéns amei de verdade!

  3. Amei, chorei com o texto ah! Como é bom saber que ainda existe esse amor despretensioso e abençoado. Já amo vocês também!!

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